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A Propriedade Intelectual

Dr. Newton Silveira – Tribuna do Direito – 08/2007


A decisão do governo brasileiro, no início de maio, de quebrar a patente do medicamento antiaids “efavirenz” foi acertada e tem o apoio da comunidade internacional. A opinião é do professor e advogado Newton Silveira, um dos mais respeitados especialistas em direito da propriedade intelectual, informando que “o Acordo Trips (tratado internacional do qual o Brasil é signatário), que foi reinterpretado em 2001 na Declaração de Doha, estabelece que entre a defesa da saúde e os monopólios industriais, a saúde vem em primeiro lugar”.
 
Segundo Silveira, os remédios patenteados têm preços muito altos e os laboratórios, para aumentar os lucros, têm ludibriado autoridades, médicos e consumidores: relançam os mesmos medicamentos com pequenas alterações, mas sem maior eficácia, só para conseguir uma nova patente e poderem cobrar mais. “Uma das vertentes dessa briga é na Índia, onde entrou em vigor uma nova lei de patentes e propriedade industrial, segundo a qual se a alteração for pequena e irrelevante, não se dá a patente”, diz.
Advogado há 44 anos e professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Fadusp) há 34, Newton Silveira é autor de seis livros e está com o sétimo a caminho. Bem-humorado, confessa que começou a escrever por acaso e logo foi cobrado para melhorar a produção. “Em 1969, havia saído um Código da Propriedade Industrial e acabei ganhando uma coluna na ’RT Informa’, onde escrevia sobre propriedade intelectual, marcas, patentes, etc. Um dia propus um artigo sobre propriedade industrial para a própria ’Revista dos Tribunais’ e disseram para pegar a lei, comentá-la e montar um livro. Fiz o trabalho, que acabou batizado pelos editores como Curso de Propriedade Industrial. Logo depois do lançamento, encontrei com o professor Oscar Barreto Filho no corredor da faculdade e ele disse: ’Agora, o senhor está devendo escrever um curso’”, conta.
Considera Direito Autoral no Desenho Industrial, também lançado pela RT, mas hoje esgotado, como o melhor livro. “O título contém um jogo de palavras, pois analisa em que medida um produto industrial pode ser uma obra artística”, lembra. A última obra publicada, escrita depois que entrou em vigor a Lei de Inovação (de estímulo à pesquisa e à invenção), saiu pela Manole com o título Propriedade Intelectual, e abrange propriedade industrial, direito de autor, software e cultivares.

 
Tribuna do Direito — Marcas e patentes são direitos de que tipo? Intelectuais?
Newton Silveira — Pode-se chamá-los de direitos intelectuais, mas é mais usual chamá-los de direitos de propriedade intelectual. Eles têm dois pés: um no Direito Civil — os direitos autorais — e outro no Direito Comercial — que é a propriedade industrial. A Lei de Propriedade Industrial tem uma bifurcação: criações industriais (as invenções, desenhos e modelos de produtos industriais) e os chamados sinais distintivos, basicamente as marcas. Mas há inúmeros sinais distintivos da empresa: o nome empresarial, o título do estabelecimento, a insígnia, o nome de domínio, o padrão visual do estabelecimento, etc.

 
TD — Anunciado o leilão de uma marca, pode-se considerar a marca ou patente registrados direitos reais de propriedade?
Silveira — Sim. É uma velha discussão, mas a posição tradicional é que eles se incluem entre os direitos reais. São direitos reais sobre bens imateriais. Autores modernos contestam essa posição. Mas, na prática, marcas e patentes comportam-se como propriedades. E a preocupação que os autores às vezes têm em negar que seja uma propriedade é por causa da possibilidade de abuso, de monopólio. Constitucionalmente, o próprio direito de propriedade tradicional, sobre bens materiais, tem nuances: o uso social da propriedade, está sujeito a desapropriação, etc. Acontece a mesma coisa com as marcas e patentes, cuja propriedade se adquire mediante o registro no órgão federal competente, que é o Inpi (Instituto Nacional da Propriedade Industrial). E elas podem ser vendidas, leiloadas, como um imóvel ou um automóvel.

TD — É possível lastrear um empréstimo ou financiamento em direitos de propriedade intelectual, já que são direitos reais de propriedade?
Silveira — Sim. A propriedade intelectual é um bem. Faz-se uma avaliação da marca registrada ou da patente concedida e, a partir daí, pode-se oferecê-las em garantia. Se os bancos vão aceitar, é outra história.

 
TD — Na prática, isso não é muito usual?
Silveira — Existem empresas de avaliação de marcas internacionais que garantem que as marcas ’Marlboro’ e ’Coca-Cola’ valem mais de US$ 70 bilhões, mais do que o patrimônio material dessas empresas. Só se vai saber se elas valem mesmo tudo isso se, algum dia, forem colocadas à venda e houver alguém disposto a desembolsar esse valor por elas. É uma questão de mercado. No fim, o que determina o valor de qualquer bem, seja ele material ou imaterial, é o mercado.

 
TD — Como o senhor vê a recente atitude do governo brasileiro em quebrar a patente do medicamento antiaids “efavirenz”?
Silveira — O governo tem todo o suporte jurídico para fazer o que fez, não só na na lei, mas no próprio Acordo Trips, que foi reinterpretado em 2001 na Declaração de Doha, e estabelece que entre a defesa da saúde e os monopólios industriais, a saúde vem em primeiro lugar. O governo brasileiro tem o apoio da comunidade internacional. O preço do medicamento patenteado vai ’lá para o céu’. É um abuso. As patentes farmacêuticas entraram no Brasil em função da lei atual, que é de 1996. Antes, não se dava no Brasil patentes para produtos farmacêuticos nem para processo de fabricação. Quando o Brasil resolveu dar patentes nessa área, até porque o Acordo Trips obriga, foram postas salvaguardas na lei. Essas salvaguardas decorrem também do próprio Acordo Trips, por que ter o monopólio temporário sobre um aparelho de barbear elétrico, é uma coisa, deter o monopólio sobre um bem essencial à vida, é outra. A tentação de ser Deus passa a ser muito grande. A lei tem de aparar as arestas e impedir os abusos e exageros.

 
TD — Já houve muita pirataria de marcas no Brasil. A globalização econômica fez alterar esse quadro?
Silveira — Houve grandes brigas de marcas. Algumas perduram até hoje. A da ’Sharp’, por exemplo, não sei se já terminou. Teve da ’All Star’, da ’Jeep’ e tantas outras. Mas a maior parte das marcas já foi recuperada pelas matrizes estrangeiras. Hoje, o mundo está todo conectado e não dá mais para fazer essas coisas. As empresas estrangeiras preocupam-se em proteger as marcas aqui, registrando-as no Inpi, coisa que não faziam antes. O próprio Inpi ficou mais atento e tem aplicado a Convenção de Paris, que protege as marcas estrangeiras notoriamente conhecidas no País, mesmo que não tenham registro.

 
TD — Como ficou a história dos japoneses que estiveram no Brasil, levaram sementes e as patentearam no Japão?
Silveira — Não é bem assim. O japonês registrou o nome ’açaí’ como marca. O governo japonês não sabia que ’açaí’ era nome de uma fruta amazônica e registrou, mas depois anulou-o. Há uma discussão sobre o que pode ou não ser patenteado. Estabelece-se uma distinção entre o que é descoberta e o que é invenção. Se é encontrada uma nova espécie na natureza, há uma descoberta, e descobertas não podem ser patenteadas. A patente só se justifica quando a interferência do trabalho do homem resulta em uma invenção. A primeira patente que existiu no mundo sobre ser vivo foi de um cientista que alterou o DNA de uma bactéria e ela passou a comer petróleo, transformando-o em produto biodegradável. O departamento de patentes norte-americano não quis conceder a patente para essa invenção, alegando que vida não se patenteia. O cientista entrou com uma ação e ganhou. Começou a biotecnologia. Se alguém acha um microorganismo desconhecido, e o leva, por exemplo, para a Inglaterra, chega lá e diz que desenvolveu em laboratório, pode até ser que consiga patentear. Mas, se alguém provar que já existia na natureza, a patente cai.

TD — A internet entrou na vida das pessoas e é um espaço muito livre. Como é que fica o controle dos direitos autorais na internet?
Silveira — Da mesma forma que o autor pode agir contra quem pirateou, por exemplo, um novo CD, pode agir contra quem veicula as composições, sem autorização, na internet. É mais difícil, mas não é impossível. Há problemas de jurisdição. O usuário, em casa: pode copiar ou não pode? Aparentemente, a lei não permite. A lei de direito de autor brasileira diz que se pode fazer a chamada cópia privada de pequenos trechos da obra. Não se poderia copiar um filme inteiro que estivesse passando na televisão, nem uma ópera inteira que estivesse tocando no rádio, porque não são pequenos trechos. Ora, mas é uma gravação privada, para uso pessoal e privado. Então, acho que uma interpretação mais consistente da lei de direito de autor em seu conjunto livra o uso privado. Há diferenças de tratamento na lei entre o que é uso privado e público. A expressão “pequenos trechos” é um problema que vai ter de ser corrigido na lei.
 
TD — Por quê?
Silveira — Porque deixa o consumidor à mercê de sanções, o que não faz sentido.
 
TD — É a mesma discussão do xerox nas universidades?
Silveira — De certa maneira, sim. Em relação à cópia de livros, se a obra estiver esgotada, não vejo razão para o aluno não tirar cópia inteira. Agora, o livro que está no mercado e a fotocopiadora do outro lado da rua copia o mesmo livro 50 vezes para 50 alunos, aí é uma competição de mercado que prejudica o autor e a editora. Vai ter de achar uma justa medida. Vai ter que ser negociado entre editoras e universidade e chegar a um acordo de bom senso. Nem completamente permitido nem completamente proibido. Países altamente capitalistas, como os Estados Unidos, em vez de tentar regular os detalhes, as exceções do direito de autor, têm normas gerais sobre uso justo. E um dos usos justos é para fins de educação e ensino. Se não prejudicar indevidamente o autor e servir para fins de ensino, não é violação ao direito de autor. Como disse, a lei precisa ser corrigida.
 
TD — A Lei de Inovação pode incentivar a pesquisa e trazer bons frutos para o Brasil, notadamente na área de tecnologia?
Silveira — Uma das coisas que a Lei de Inovação pretende é estimular a interação entre universidade e empresa na pesquisa aplicada. A universidade precisa encontrar fontes de financiamento. E a pesquisa aplicada vai permitir que ela se auto-financie. As universidades européias e norte-americanas ganham dinheiro com patentes. Os professores também. É uma visão mais capitalista, porém é uma forma de incentivar as boas cabeças a permanecer na universidade, o que é muito bom.
 
TD — Mas o Brasil tem poucas universidades que fazem pesquisa.
Silveira — Está se tentando embarcar nas coisas novas: na biotecnologia, na nanotecnologia. Se isso não for feito, vai-se perder o bonde outra vez. Ou consegue-se gerar tecnologia de ponta, ou os brasileiros vão virar meros consumidores de tecnologia estrangeira e vão perpetuar a dependência em relação aos países mais desenvolvidos. O desenvolvimento tecnológico passa, necessariamente, pela universidade. As empresas não podem mais ficar observando as universidades de longe. As empresas têm de se aproximar, de se envolver, e investir em pesquisas.
 
TD — O sr. tem um livro em que trata da Lei de Cultivares…
Silveira — É uma lei de 1997, que protege as chamadas variedades vegetais desenvolvidas pelos agricultores. Protege, por exemplo, sementes híbridas.
 
TD — Protege enxertos?
Silveira — Se dos enxertos surgirem novas variedades estáveis, não forem apenas resultados eventuais, sim, podem ser protegidas como espécies exclusivas de quem as criou. Mas, só as partes reprodutivas da planta. O criador da variedade pode cobrar royalties sobre a venda das sementes destinadas ao plantio ou sobre as mudas, mas não sobre os frutos. A lei só dá propriedade intelectual para as sementes que vão ser plantadas.
 
TD — Com tantas novidades na área, o Inpi aprimorou-se? Vem funcionando adequadamente?
Silveira — Não. O problema maior é a demora. Para se registrar uma marca está levando seis anos. Uma patente para ser aprovada demora oito anos. Foram contratados mais funcionários e estão prometendo mais celeridade. Mas a situação é complicada. A sede oficial do Inpi é em Brasília, mas ele funciona no Rio de Janeiro. Sofre uma enorme influência de lobistas e políticos, principalmente das multinacionais da indústria farmacêutica. Tinha de sair do Rio. Mas ninguém consegue pôr o Inpi onde a lei manda, que é Brasília.
 
TD — Já que há lobistas por toda a parte, não seria o caso de regulamentar o lobby?
Silveira — Seria bom oficializar o lobby. Pode ser uma profissão digna, se ficar aparente, transparente.
 
Um admirador do centro da cidade
 
Newton Silveira é paulistano da gema e freqüenta o centro da cidade desde que se conhece por gente. Estudou no Colégio São Bento de 1946 até 1958. Depois, fez o cursinho ’Castelõe’s, que ficava na Rua São Bento e preparava para a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Em 1959 entrou na “velha e sempre nova academia”. Em 1963, logo depois que se formou, passou a trabalhar no escritório do pai, que já se dedicava às questões jurídicas da propriedade industrial e ficava na Rua Benjamin Constant. Em 1973, começou a dar aulas nas Arcadas, onde concluiu mestrado e doutorado e onde leciona até hoje.

“Todo o fim de ano digo à minha mulher que vou parar, mas todo o início de ano letivo estou lá, na faculdade. Dar aula é um vício. Dá trabalho, mas é muito bom”, relata.
Silveira diz que os estudantes hoje estão muito mais preocupados com o mercado de trabalho e “querem mais aulas, mais provas, mais trabalhos para fazer. Exigem do professor. O interesse em aprender, em se preparar, cresceu muito”, diz. Mas, ressalta que a realidade não é a mesma de outros cursos de Direito. “Tenho visto em escolas que não vou revelar mudanças inapropriadas na relação professor-aluno: os jovens professores são repetidores de matéria e o estudante um aluno-consumidor, que quer ganhar a maior quantidade possível de material, tudo pronto, padronizado, para levar para casa e usar no trabalho. Se o professor exige que pense, reclama, diz que o professor é ruim, porque não quer ter o trabalho de pensar. É uma formação deformada”, adverte.
Mas, o professor Newton Silveira não vive só de Direito. Quase foi pianista. Começou a estudar música aos sete anos. O piano o acompanhou até aos 24, idade com que se casou pela primeira vez. Hoje, para se distrair, ainda dedilha as teclas do instrumento. Casado pela terceira vez com a geógrafa Rosa Cristina, Silveira tem dois filhos do primeiro casamento (João Marcos, também advogado formado pelas Arcadas, e Roberta, atualmente estudante de Direito) e é avô de cinco netos (Juliana, Gabriel, João Pedro, Giovanna e Luiz Guilherme).