Karin Grau-Kuntz (Munique)
No fim do ano passado, no calor de uma discussão entre profissionais da área de propriedade intelectual, ouvi a afirmação de que a pirataria seria uma forma de desobediência civil. A declaração radical, que tem por mérito sintetizar em duas palavras a dimensão da preocupação da indústria e de muitos advogados em relação a este fenômeno, merece ser tratada com atenção.
No fim do ano passado, no calor de uma discussão entre profissionais da área de propriedade intelectual, ouvi a afirmação de que a pirataria seria uma forma de desobediência civil. A declaração radical, que tem por mérito sintetizar em duas palavras a dimensão da preocupação da indústria e de muitos advogados em relação a este fenômeno, merece ser tratada com atenção.
De plano, pirataria não é desobediência civil. A desobediência civil pressupõe o reconhecimento da validade fática do Direito e, a partir daí, a decisão de não cumpri-lo. Desobediência civil é um mecanismo de protesto, opção consciente de não prestar obediência às Leis de algum governo, o que implica necessariamente no reconhecimento e aceitação destas Leis. A decisão de praticar desobediência civil não tem como objetivo o bem estar individual, mas antes o bem estar coletivo.
O cerne do problema da pirataria, ao contrário, encontra-se em um momento anterior ao da desobediência civil, nomeadamente na questão da eficácia do direito.
Para compreender o que é eficácia do Direito, ou eficácia da norma, temos de antemão de cuidar distinguir entre validade jurídica e eficácia jurídica da norma.
Uma norma tem validade jurídica quando é posta pela autoridade competente através do processo legislativo previsto. Juridicamente — ou positivamente — falando, toda norma assim posta gozará sempre de validade e conseqüentemente exigirá do destinatário um comportamento adequado a ela.
Uma outra questão é saber se a norma goza de validade fática, ou seja, se é eficaz. Uma norma é aceita e cumprida pela maioria de seus destinatários quando está calcada em convicções que coincidem com os valores básicos morais daqueles. Esta validade moral, reconhecimento moral da norma posta pelo Estado pelo seu destinatário, culmina na eficácia plena da norma. A eficácia da norma é medida então pela dimensão em que a norma é cumprida voluntariamente pelo destinatário.
Uma norma que não coincide com as convicções dos destinatários só tem chance de se tornar eficaz através da aplicação das sanções que acompanham o seu descumprimento. A sanção convenceria assim o destinatário da validade da norma. A aplicação do mecanismo da sanção, da chamada “lei das baionetas”, só é, porém, praticável em âmbito limitado.
Quando falta o reconhecimento da norma por parte de uma parcela significativa dos destinatários, o direito contido nesta norma não se sustentará.
Um exemplo histórico nos é fornecido pela chamada Lei Seca nos Estados Unidos. Como conseqüência do pensamento puritano, a fabricação, o comércio, a importação ou exportação de bebidas alcoólicas foram em 1919 oficialmente proibidos naquele país. Treze anos após a sua promulgação esta lei foi abolida. O fiasco da Lei Seca deve-se ao fato de ter sido ela amplamente ignorada pelos cidadãos americanos. O conteúdo da norma não foi reconhecido pelos seus destinatários. Apesar da ética puritana, apesar dos conhecidos efeitos negativos à saúde, o consumo de bebidas alcoólicas não era — e continua não sendo — compreendido como moralmente abominável.
Retomando o problema da pirataria, também ela envolve a falta de interação entre o conteúdo da norma jurídica e as convicções internas dos destinatários da norma.
Juridicamente falando pirataria é crime, moralmente, no íntimo da massa destinatária da norma, não é. Os destinatários da norma sabem que comprar produto pirateado é crime, mas quando compram o produto não tem a sensação de estar fazendo algo ilegal, por que comprar produto pirata não é para eles moralmente condenável.
Em 04 de abril de 2007 foi publicado no Diário do Amazonas uma notícia intitulada “Semaga permite pirataria no centro”. Resumidamente a notícia conta que o secretário de agricultura e abastecimento havia permitido que os vendedores de CD e DVD piratas, que haviam sido expulsos pela polícia federal, voltassem a vender no centro de Manaus. Ocorre que, logo após a expulsão, os vendedores retornaram ao centro da cidade, ocupando agora não mais a praça da qual haviam sido expulsos, mas outras áreas adjacentes. A atividade dos ambulantes tomou assim proporções difíceis de controlar.
O secretário decidiu então tomar uma atitude para impedir que os ambulantes invadissem todas as calçadas do centro da cidade. Em suas palavras: “após a apreensão da PF, chegamos a reprimir a invasão em outras áreas do centro. Não adiantou. Os vendedores voltavam para os mesmos locais. Na semana passada, eles me perguntaram se eu os reprimiria se eles voltassem para a rua Tamandaré. Eu disse que não. Agora eles estão se organizando nesse local”. A reportagem segue afirmando que os fiscais da secretaria estiveram até mesmo presentes ajudando a organizar os ambulantes. A secretaria por sua vez nega tal fato.
Ressaltando que “dezenas de consumidores estavam no local à procura de produtos piratas” a notícia em questão termina citando o dispositivo legal onde vem definido que a violação dos direitos de autor é crime.
Esta notícia espelha de maneira exemplar a questão da validade e da eficácia do Direito. De um lado os ambulantes e os consumidores, formalmente criminosos. No centro, a autoridade pública impotente. No outro extremo, a letra da Lei, oca frente à realidade.
O combate à pirataria depende necessariamente de uma nova consciência dos destinatários da norma. Um ambulante jamais venderia drogas ou armas em praça pública. Não só por que sabe que agindo assim estaria indo contra a lei, mas por que tem a consciência de que o comércio de drogas ou de armas é moralmente repudiável.
O homicida decide por não cumprir a lei e mata, mas apesar de sua decisão de não respeitar a lei e matar, tem ele consciência plena de ser o seu ato moralmente repudiável. Se porventura ele não estiver em condições psíquicas de reconhecer a imoralidade do seu ato, ele terminará na clínica psiquiátrica e não atrás das grades.
Conscientes da discrepância entre a validade e a eficácia da norma, o governo e os setores econômicos interessados vêm apostando por meio de campanhas de conscientização e medidas de apreensão todas as suas fichas em uma tática que tem por fim a rápida formação de uma nova percepção moral com relação aos produtos pirateados. Estas medidas são, porém, muito pouco para o combater o problema da pirataria.
Pirataria é problema vinculado ao nível de desenvolvimento econômico das sociedades. É com certeza muito mais fácil convencer aquele que tem o que comer das desvantagens da pirataria para o Estado — e, portanto, das desvantagens para ele mesmo, uma vez que ele próprio não é um elemento alheio ao Estado, mas sim parte do próprio Estado — do que convencer aquele que usa as vantagens adquiridas com os produtos piratas para colocar comida em cima de sua mesa. O sucesso das campanhas de esclarecimento depende assim de uma realidade sócio-econômica propícia à sua assimilação.
Somado a este fator não podemos fechar os olhos ao desenvolvimento tecnológico, que gerou e continua a gerar novos parâmetros econômicos: as mercadorias vão perdendo em importância frente ao “capital” intelectual.
O mercado econômico está em transformação e muitas empresas procuram defender sua posição neste novo mercado repetindo os modelos de reação convencionais. Neste sentido notamos a gigantesca onda de processos contra todo e qualquer tipo de pirataria. Ao invés de investir sua energia na busca de respostas para os desafios apresentados pela nova e inevitável dinâmica econômica, muitas empresas se limitam no momento a perseguirem a estratégia que denominamos de “estratégia da antipirataria”, ou de “caça às bruxas”, buscando sistematicamente compensação econômica na repressão à pirataria, esquecendo-se completamente que medidas voltadas exclusivamente ao combate dos sintomas são paliativas e ineficazes contra a moléstia em si.
A questão da pirataria é um problema estrutural, e problema estrutural não se deixa combater superficialmente. O momento exige repensarmos uma série de valores.
É um erro acreditar que a solução do problema pirataria estaria exclusivamente na mudança de comportamento do consumidor. Pelo contrário ela também exige uma nova postura dos produtores de bens imateriais, que não podem se furtar a encarar a nova dinâmica do mercado e a se adequar a ela.