Karin Grau-Kuntz (Munique)
Em abril de 2007, foi firmado um acordo judicial prevendo a interrupção definitiva da publicação e comercialização da biografia Roberto Carlos em Detalhes, de autoria de um historiador e jornalista. A discussão que envolveu a querela envolve o conflito entre a liberdade de expressão e o direito à intimidade, ambos assegurados pela Constituição brasileira. Com a solução do problema através de um acordo entre as partes envolvidas, ficou aberta a questão de como o judiciário se manifestaria para solucionar o conflito entre os princípios constitucionais em pauta.
Em abril de 2007, foi firmado um acordo judicial prevendo a interrupção definitiva da publicação e comercialização da biografia Roberto Carlos em Detalhes, de autoria de um historiador e jornalista. A discussão que envolveu a querela envolve o conflito entre a liberdade de expressão e o direito à intimidade, ambos assegurados pela Constituição brasileira. Com a solução do problema através de um acordo entre as partes envolvidas, ficou aberta a questão de como o judiciário se manifestaria para solucionar o conflito entre os princípios constitucionais em pauta.
Conflitos entre princípios constitucionais devem ser solucionados através da aplicação de uma técnica de composição dos interesses envolvidos. Para tanto faz-se necessária a verificação dos limites de ambos os princípios seguida de uma análise da situação concreta, palco de manifestação do conflito. É importante lembrar que o conflito entre princípios jurídicos não implica na incompatibilidade entre ambos. Não são raros os casos em que, frente a uma determinada situação, a adoção de um princípio implicará o afastamento de outro, que com aquele entre em testilhas. Isto não quer porém significar que o princípio afastado seja eliminado do sistema. Pelo contrário, frente a uma outra situação fática pode ser que o mesmo princípio, então afastado, venha a prevalecer.
A análise exigida pela aplicação da técnica de composição de interesses força o magistrado durante o processo de decisão a estabelecer critérios que irão apoiar sua decisão sobre a aplicação de um ou de outro princípio. Decisões deste porte exigem assim um alto grau de argumentação técnica, o que faz delas aos olhos daqueles que se interessam pelo direito leitura de grande valor. Neste sentido o objetivo deste artigo é trazer a baila uma decisão recente da Corte Constitucional alemã, que a exemplo do conflito entre os princípios de liberdade de expressão e direito à intimidade no caso da biografia Roberto Carlos em Detalhes, entendeu por proibir a publicação e comercialização de um romance.
O romance em questão, intitulado Esra, versa sobre o fracasso da relação amorosa entre o escritor Adam e a atriz Esra, uma mulher de origem turca. O protagonista Adam nasceu em Praga, é judeu e vive no momento da narrativa do romance em Munique, na Alemanha.
O livro expõe traços complexos da personalidade de Esra, destaca as dificuldades culturais em uma relação onde os protagonistas pertencem a círculos de cultura diferentes e tematiza os problemas gerados pelas relações familiares que envolvem o casal, especificamente a relação de ódio entre Adam e a mãe de Esra, no romance chamada de Lale, e os problemas que envolvem Ayla, uma filha do primeiro casamento de Esra. O autor explora também os detalhes da vida íntima do casal protagonista.
A figura de Esra é caracterizada como uma pessoa instável e extremamente dependente de sua mãe. Ela sofre com a doença incurável de sua filha e recebe a notícia de uma segunda gravidez com considerações a respeito de um aborto, idéia que rejeita por conta de sua necessidade egoísta de ter um segundo filho para colocar no lugar de sua filha doente. No romance a atriz Esra é agraciada com um prêmio pela sua excelente atuação em um filme.
A figura de Lale, mãe de Esra, é caracterizada por uma alcoólatra fria e calculista, tirana, casada pela terceira vez e dona de um hotel na Turquia. Como sua filha Esra, também ela foi agraciada no romance, em razão de seu trabalho voltado a proteção do meio ambiente, com o prêmio Nobel alternativo. Lale é, na temática da obra, a responsável pelo fracasso da relação entre Adam e Esra.
Na vida real o autor do Romance, Maxim Biller, é judeu, cresceu em Praga e vive atualmente em Munique. Neste sentido o romance não deixa dúvidas sobre seus traços autobiográficos. Biller manteve durante um ano e meio um relacionamento com uma atriz alemã de origem turca, conhecida não só pelo seu trabalho, mas também por ter ganho aos 17 anos, em 1989, um conhecido prêmio de teatro alemão. Esta atriz tem uma filha do seu primeiro casamento que sofre de uma doença incurável. Sua mãe é ganhadora do prêmio Nobel alternativo e é dona de um hotel na Turquia. Como a figura de Lale, ela está casada pela terceira vez.
Diante destas coincidências, a atriz e sua mãe foram a juízo pleitear a proibição do livro. Ambas entenderam ver no contexto do romance Esra uma afronta ao direito à intimidade protegido constitucionalmente. Os detalhes do romance coincidentes com a vida real, argumentam, levariam o leitor a identificar nas figuras de Esra e Lale elas mesmas, pessoas da vida real. O leitor não estaria assim em condições de reconhecer o que no contexto da narrativa seria ficção ou realidade.
A questão galgou todas as instâncias da justiça alemã, chegando, por fim, às mãos dos juízes da Corte Constitucional. Os magistrados iniciaram a análise para o julgamento traçando os limites dos princípios que envolvem a querela.
A “liberdade da arte” (Kunstfreiheit), uma das formas de expressão do direito à livre expressão, diz a Corte, é uma liberdade que é garantida contra a sua repressão pelo Estado. A garantia desta liberdade na Constituição de Weimar, por exemplo, foi uma reação contra as forças que pretendiam combater o desenvolvimento das artes. Um exemplo destas forças reacionárias é fornecido pela expressão usada para caracterizar a arte moderna durante o nazismo na Alemanha: “arte degenerada” (entartete Kunst). A luta do nazismo contra este tipo de arte tem seu ápice em uma exposição organizada em 1937 em Munique, quando foram expostas obras modernas “degeneradas”, entre elas as de artistas como Chagal, Kandisnsky e Picasso. Apesar deste fato histórico, que sem sombra de dúvida marca em forma de experiência negativa a preocupação dos magistrados alemães em assegurar a expressão livre manifestada na criação artística, a Corte Constitucional destacou que tal liberdade não é ilimitada e que neste sentido, quando e se o seu exercício vier a ferir os direitos de terceiros, uma intervenção do Estado poderá ser necessária.
Na análise do direito à intimidade, uma das expressões centrais do direito de personalidade, a Corte Constitucional entendeu ver as autoras identificadas no contexto do romance. Ao traçar os limites deste direito em relação ao de liberdade artística destacou as possíveis conseqüências ao lembrar que o abuso do direito à intimidade poderia levar à proibição de discussões e críticas importantes para a formação de opinião pública.
Após a apuração dos limites de ambos os princípios constitucionais, a Corte alemã tratou de aplicar os resultados desta análise ao caso específico. Partindo do reconhecimento de que é impossível escrever um romance sem se basear na realidade, procurou estabelecer critérios para delimitar o âmbito dentro do qual a decisão deveria ser tomada. O escritor, argumenta, parte da realidade investindo sua força criativa de tal forma a criar uma realidade fictícia. A realidade fictícia de um romance se desprenderia assim da realidade que serviu de ponto de partida para a sua criação. Neste sentido também aquelas obras que escondem por trás das figuras protagonistas pessoas verdadeiras podem ser descritas como obras de ficção. Usando as próprias palavras da Corte alemã, “uma obra é caracterizada como romance quando logra criar uma realidade estética independente da realidade «real».” Quanto mais um autor distancia uma figura de ficção da figura de inspiração da vida real, maior será a possibilidade de se encontrar naquela primeira figura uma expressão artística. Isto não quer dizer que o autor tenha de desfigurar a figura de inspiração de modo que ela não possa mais ser reconhecida, mas antes se trata de apresentar no corpo do romance a figura de inspiração da vida real, de tal forma que o leitor tenha para si claro que aquilo que ele lê não corresponde à realidade. Neste sentido, quanto maior o valor artístico da figura de ficção, ou seja, quanto maior a sua caracterização fictícia, menor será o risco de violação do direito à intimidade da figura de inspiração da vida real; quanto menor o valor artístico, maior o risco de violação daquele princípio constitucional.
O critério desenvolvido pela Corte Constitucional para estabelecer os limites dos princípios em conflito assume assim uma natureza artística. O parâmetro de valoração da realidade artística, que neste raciocínio se confunde com a ficção, é a realidade “real”. Argumentação semelhante já havia sido adotada para embasar uma decisão do ano de 1971, quando a Corte Constitucional alemã proibiu a publicação e comercialização do romance de Klaus Mann, intitulado Mefisto.
Partindo da fórmula “quanto maior o distanciamento da realidade, maior o grau artístico; quanto menor, maior o riso de violação de direito pessoal” a Corte alemã chegou a conclusões diferentes a respeito da violação dos direitos da atriz e de sua mãe.
No que diz respeito à figura de Lale, não reconheceu uma violação do direito à intimidade da mãe da atriz. Lale é sem sombra de dúvida identificada no romance como uma determinada pessoa da vida real e não se pode negar que sua caracterização no contexto do romance é negativa. Os traços negativos que o autor empresta à figura de Lale não são, porém, na opinião da Corte, suficientes para caracterizar violação de direito de personalidade. Apesar de inspirada na pessoa da mãe da atriz, a figura de Lale logrou ganhar no corpo do romance uma nova dimensão fictícia (e neste sentido seria uma figura artística).
Já no que diz respeito à figura de Esra, a situação que se coloca é, na opinião da maioria da Corte, diferente. O autor viveu de fato uma relação amorosa com uma atriz identificada no romance na figura de Esra. Enquanto que no que diz respeito à figura de Lale o autor usou recursos de narrativa indiretos, referindo-se a boatos, opinião de terceiros, suposições etc., na narrativa dos fatos e sentimentos que envolvem a figura de Esra optou por uma linguagem direta, realista e detalhada, descrevendo a relação e seus detalhes íntimos a partir de sua perspectiva, usando do artifício de uma linguagem baseada no “eu”. Aqui a Corte Constitucional reconheceu o risco do leitor confundir a figura de Esra com a pessoa da vida real. Agravante é o fato do autor descrever nos mesmos termos a relação entre Esra e sua filha doente, o que corresponde a fatos reais. No que diz respeito à protagonista principal de sua obra o autor não logrou desprender a figura fictícia da figura real. A figura de Esra não seria assim uma figura artística e, neste sentido, o autor teria violado com o romance o direito à intimidade de sua ex-companheira, o que justifica no entender da Corte a intervenção do Estado tolhendo a liberdade artística ao proibir a publicação e a comercialização do romance Esra.
Esta decisão não foi unânime.Três dois oitos juízes da Corte Constitucional alemã criticaram a adoção do critério acima exposto, não entendendo ver o direito à intimidade da autora atriz violado pelo romance de Biller.
A decisão causou fortes reações nos círculos artísticos e editoriais, fazendo corrente e atual a expressão “censura”.
O que aqui é relatado são os fatos expostos nos votos dos representantes da Corte Constitucional alemã. Com a proibição do romance não nos será possível formar opinião própria sobre a querela. Se por um lado a expressão “censura” desperta uma sensação de grande mal estar, não se pode, por outro, negar que o formato de um romance não pode ser mal usado de forma a servir de veículo de difamação de uma terceira pessoa.