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A relação entre Propriedade Intelectual e agricultura data de 1808

Desde aquela época, passou a existir no Brasil, que era um país essencialmente agrícola, uma certa relação com a propriedade intelectual, mas que tinha muito a ver com a revolução industrial.

O que tem a ver a propriedade intelectual com assuntos de agricultura? Parece muito distante, mas talvez não seja. Quando D. João VI se instalou, em 1808, no Brasil, já um ano depois, ou seja, em 1809, baixou uma Lei de Patentes no Brasil.

Esse alvará de D. João VI vinha junto com incentivos fiscais à industrialização. Passou-se então da proibição de trabalhar, ao direito de trabalhar com incentivo tributário e de patentes. Todo aquele que introduzisse uma nova máquina ou um novo processo de fabricação e o submetesse à Real Junta do Comércio, teria o seu privilégio por catorze anos.

Então, já existia aí, num país essencialmente agrícola, uma certa relação com a propriedade intelectual, mas muito mais a ver com a revolução industrial. Mais tarde, em 1830, foi publicada a primeira lei que funcionou no Brasil sobre patentes. O projeto foi apresentado pelo então Deputado Rui Barbosa. Recebeu o parecer de Rui e, o interessante, é que a iniciativa dessa lei partiu do Ministro da Agricultura.

Logo após o final da Segunda Guerra Mundial, em 1945, o então Presidente Getúlio Vargas tentou inserir o Brasil no mundo industrial e fez o Código de Propriedade Industrial, que era um Decreto de setembro de 1945. O Artigo 3º desse Decreto dizia que a proteção da propriedade industrial se efetiva mediante a concessão de patentes de invenção, de modelos de utilidade, de desenhos ou modelos industriais e variedades novas de plantas. Estava lá, no Código de Propriedade Industrial de 1945. É verdade que, nas Disposições Finais, no Artigo 219, dizia que essa parte de variedades novas de plantas dependeria de regulamentação especial. Essa regulamentação nunca veio, portanto ficou na lei, mas não foi aplicado.

Bem mais recentemente, após o conflito do Brasil com os Estados Unidos sobre a indústria farmacêutica no início dos anos 90, no governo Collor, houve muita participação política, um pouco parecida com o que acontece atualmente com a biotecnologia. Paralelamente, corria um acordo internacional, no âmbito do GATT, que foi descambar no tratado de Marrakesh, que criou a Organização Mundial do Comércio, e traz no seu bojo um tratado anexo, que é o TRIPS, uma sigla mal feita de Trade-Related Intellectual Property Rights.

A alegação que os países desenvolvidos traziam era que, se não houvesse um nível de proteção similar entre os diversos países que praticavam o comércio internacional, haveria uma espécie de concorrência desleal. Porque um país não pagava royalties, o outro pagava, e os produtos iam para o comércio internacional com preços diferenciados e isso era injusto para quem respeitava a propriedade intelectual tão brilhantemente como os países do primeiro mundo.

Esse tratado foi firmado pelo Brasil e entrou em vigor em Janeiro de 1995, daí resultando uma série de novas leis. Primeiro, em ordem cronológica, a nossa Lei de Propriedade Industrial, que partiu do Projeto do Governo Collor, mas foi extremamente modificada. Quando saiu aprovada da Câmara a caminho do Senado, parou no Instituto Nacional de Propriedade Industrial e os advogados atuantes na área tentaram adaptar e discutir o Projeto tal como saíra da Câmara, para que ele se adaptasse ao famoso acordo TRIPS. A Lei foi promulgada em Maio de 1996, para entrar em vigor um ano depois, em Maio de 1997.

A Lei das Cultivares, de 1997, portanto posterior à de 1996. Isso é importante porque ela pode ter revogado certas normas da Lei de 1996. Em 1998, temos respectivamente a Lei 9.610, de Direito de Autor, e a Lei 9.609, do Software ou de Programas de Computador. Temos também um projeto de lei dos Chips ou Circuitos Integrados, mas está dormindo no Congresso Nacional e os americanos não lembraram de reclamar disso.

Qual é a vantagem da Lei das Cultivares e porque ela foi feita tão açodadamente? Porque existe um tratado internacional da UPOV, União dos Produtores de Obtenções Vegetais, que tem a ver, exatamente, com as variedades vegetais. Existe uma Revisão da UPOV de 1978 e uma de 1992. Se nós perdêssemos tempo, teríamos de entrar na de 1992. A Revisão de 1992 protege a planta e as partes da planta, e a de 1978 só as sementes para fins de reprodução. Então o Brasil copiou a Lei de Propriedade Industrial de 1971, adaptou-a a termos agrícolas, e colocou em vigor a Lei das Cultivares, aderindo à Revisão da UPOV de 1978.

O que a nossa Lei de Cultivares protege? Embora ela diga que protege uma variedade, uma cultivar, na verdade ela protege a semente, a parte reprodutiva da planta. Isso já é uma garantia.

Mas tem um outro risco. Quando se discutiu o Projeto da nossa Lei de Propriedade Industrial, a professora Glaci Zancan, do Paraná, brigou muito para que se definisse, na lei, o que era organismo transgênico. Não é comum colocar definições dentro da lei, mas foi colocada a definição de organismo engenheirado, porque o tal acordo TRIPS permitia que na área de biotecnologia, embora determinasse como regra geral que haveria patente em todas as áreas da tecnologia, a lei podia se restringir a microorganismos engenheirados. Quanto às plantas, por sua vez, o acordo TRIPS determinava que as novas variedades seriam protegidas por uma legislação sui generis, ou por patentes, ou por um misto dos dois.

Sobraram os processos de fabricação que não sejam exclusivamente biológicos, os que tenham a intervenção do ser humano no processo de fabricação. Então, fica uma dúvida. Por exemplo, em um processo de fabricar “um animal”. O produto resultante desse processo pertenceria ao fabricante? O texto não vai entrar no problema dos animais, que é muito mais complexo. Mas vai abordar o problema das plantas.

Antes do Alvará de D.João VI em 1809, antes da Corte se instalar no Rio de Janeiro e, portanto, antes de o Brasil ter uma lei de patentes, houve um Edito, de 1752, que no seu Artigo 3º declarava “… ninguém poderia empregar as máquinas inventadas pelos concessionários durante dez anos, mas seria permitido a qualquer pessoa adquirir o arroz tratado pelas ditas máquinas, de qualquer pessoa que o vendesse”. O legislador de 1752 foi prudente, e nem havia ainda uma lei de patentes. A máquina é protegida, mas o arroz descascado pela máquina, não.

O acordo TRIPS, o tal anexo ao acordo que criou a OMC, coloca no Artigo 27, § 3, B, que os membros podem considerar como não patenteáveis: Plantas e animais, exceto micro-organismos; Processos essencialmente biológicos (estes não são patenteáveis ou podem não ser) para produção de plantas e animais, excetuando-se os processos não-biológicos e microbiológicos (estes, então, são patenteáveis); E que os países deveriam conceder proteção a variedades vegetais, seja por meio de patentes, seja por meio de um sistema sui generis eficaz, seja por uma combinação de ambos.

No Artigo 28, o acordo TRIPS estabelece que o titular de uma patente de processo, onde se inclui aquele não essencialmente biológico, terá o direito de evitar que terceiros usem o processo, e usem, coloquem à venda, vendam, ou importem, pelo menos o produto obtido diretamente pelo processo. Então, não se pode proteger o resultado do processo, mas pode-se proteger o processo e, em conseqüência, o resultado do processo é protegido. Anteriormente a 1997, quem tinha patente do processo não tinha alcance sobre o produto produzido pelo processo. A não ser que patenteasse o produto.

Então, o Brasil baixou a sua Lei de Cultivares obedecendo essas normas do acordo internacional. Promulgou a Lei 9.456 de 1997, que institui a Lei de Proteção de Cultivares. Mas, o Artigo 2º dessa Lei estabelece que o Certificado de Proteção de Cultivar é a única forma de proteção de cultivares. E acrescenta, e de direito, – é enfático, porque você já está falando de direito -, que poderá obstar a livre utilização de plantas ou de suas partes de reprodução ou de multiplicação vegetativa no país.

O Artigo 8º da mesma Lei das Cultivares diz que a proteção da cultivar recai exclusivamente sobre o material de reprodução ou de multiplicação vegetativa da planta, que é semente, para fins legais. Com certas exceções, como plantar sementes para uso próprio, e usar ou vender como alimento ou matéria prima o produto obtido de seu plantio, exceto para fins reprodutivos.

Então, o que a Lei de Cultivares protege? Numa cultivar protegida, é a semente, mas a semente para fins de reprodução. Se for para comer a semente, ela pode ser vendida livremente. A Lei de Propriedade Industrial brasileira diz, no Artigo 42, que o titular da patente de processo tem direitos sobre o próprio processo e sobre o produto obtido diretamente do processo patenteado. Mas, como acabamos de ver, se o resultado desse processo é parte de planta, grão ou até mesmo semente, ele não pode ser protegido, a não ser por meio de uma cultivar protegida, através de um sistema próprio, da lei própria, porque diz o Artigo 2º: O Certificado de Proteção de Cultivar é a única forma de proteção de cultivares, e de direito, que poderá obstar a livre utilização de plantas ou de suas partes de reprodução ou de multiplicação vegetativa no país.