Karin Grau-Kuntz, Munique
A ANFAPE (Associação Nacional dos Fabricantes de Autopeças) entrou em abril deste ano com uma representação junto ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), com o fim de garantir a venda independente de peças de reposição no mercado.
A controvérsia envolve dois aspectos diferentes: por um lado o direito exclusivo das montadoras de veículos, que registram como desenho industrial as peças externas que compõem seus automóveis (produtos complexos, posto que formados por vários elementos) e, por outro lado, a sempre atual questão de abuso de direito.
A disputa não envolve a proteção garantida às peças de automóveis novas e originais enquanto no mercado primário, mas antes questiona a função desta proteção no mercado secundário de reposição de peças. Isto quer dizer que não se coloca em dúvida a proteção conferida às peças novas e originais nas fases de preparação e montagem dos automóveis. Aqueles que defendem a possibilidade de exclusão destas peças da proteção como desenho industrial reportam-se a um momento posterior, quando estas não são mais utilizadas na fabricação do produto, mas sim como alternativa de reposição de uma peça defeituosa ou danificada, sem a qual não seria possível restituir ao produto a sua aparência original. Aqui implícito que a peça de reposição deve então ser necessariamente idêntica à peça original de fabricação, sob pena de ser impossível restituir ao produto a sua aparência original (daí serem elas também chamadas de peças “must-match”). Estas peças são necessariamente visíveis durante a utilização normal do produto, ou seja, no que diz respeito ao setor automotivo não são consideradas peças must-match as que se encontram sob a capota do motor, mas antes aquelas visíveis, como por exemplo um espelho retrovisor, a porta do automóvel, o pára-choque etc. Por fim, faz-se necessário distinguir entre peças must-match e interconexões ou interfaces. Estas últimas são peças que cuja função é conectar um produto ou um componente a outro.
A discussão iniciada pela representação da ANFAPE no Brasil é questão controvertida na Europa há mais de 15 anos.
A publicação em 13 de outubro de 1998 da Diretiva 98/71/CE da União Européia (na época Comunidade Européia) relativa à proteção legal de desenhos e modelos foi precedida da publicação de um “Livro Verde sobre a proteção jurídica dos desenhos industriais” que, além de apresentar os resultados de uma análise sobre a matéria, continha uma proposta voltada a viabilizar a aproximação das legislações dos Estados Membros. No que diz respeito às peças must-match, o Livro Verde continha uma disposição chamada cláusula de reparação (“repair clause”), segundo a qual os direitos exclusivos sobre desenhos protegidos não podiam ser exercidos contra terceiros que, passados três anos após a primeira colocação no mercado de um produto “complexo” em que um determinado desenho ou modelo tivesse sido incorporado, copiassem esse desenho, desde que o desenho ou modelo em questão “dependesse” da “aparência” do produto complexo de modo a restituir-lhe a sua aparência original.
A idéia contida na cláusula de reparação era evitar estabelecer um monopólio no mercado de peças sobressalentes, considerando que a proteção jurídica garantida a estas peças neste mercado secundário geraria a exclusão de qualquer possibilidade de concorrência.
A cláusula de reparação prevista no Livro Verde sofreu severas críticas do setor industrial. Por um lado os produtores independentes de peças de imitações das originais criticaram o prazo de proteção de três anos previsto na cláusula de reparação. A comissão procurou então adotar uma nova abordagem, apresentando uma nova proposta onde previa que os terceiros interessados em copiar o desenho de um determinado produto complexo para fins de reparação poderiam fazê-lo imediatamente, mediante uma remuneração eqüitativa e razoável. Tal solução não foi por sua vez aceita nem pelos produtores independentes e nem pela indústria automobilística, produtora das peças originais. Face às divergências profundas optou-se então por renunciar-se na prática à harmonização das legislações nacionais dos Estados-Membros nesta matéria. Para a elaboração da Diretiva relativa à proteção legal de desenhos e modelos lançou-se mão assim de um mecanismo chamado “freeze plus”, ou seja, do “congelamento” das legislações nacionais existentes e da determinação da possibilidade de introduzir alterações a essas disposições apenas quando o objetivo das mesmas fosse a liberalização do mercado desses componentes.
A solução definitiva do problema foi deixada para mais tarde. Neste sentido a Diretiva determinou até outubro de 2004 a apresentação de um estudo onde deveriam ser abordadas as conseqüências desta situação insatisfatória para a indústria comunitária, para os consumidores, para a concorrência e para o funcionamento do mercado interno. A Diretiva também previu para mais tardar um ano após a apresentação do Estudo a proposição ao Parlamento e ao Conselho Europeu das alterações à Diretiva necessárias para regular definitivamente o mercado interno de componentes e produtos complexos.
Em conformidade com os prazos previstos na Diretiva, a Comissão da Comunidade Européia apresentou em 14 de setembro de 2004 uma proposta de alteração do artigo 14 daquele instrumento legal.
Partindo do princípio de que a diferença de regimes jurídicos nos Estados-Membros prejudica o funcionamento do mercado interno distorcendo a concorrência, e que uma decisão no sentido de unificar as legislações seria imprescindível, a Comissão decidiu por adotar a chamada “free repair clause from day one”, ou seja a liberalização completa do mercado secundário de peças de reposição must-match. Nos motivos da proposta foram elencadas as seguintes razões fundamentais que embasam a opção de adoção de um regime de liberalização completa, imediata e gratuita:
– o único objetivo da proteção dos desenhos industriais é conceder direitos exclusivos sobre a aparência de um produto, mas não um monopólio relativo ao produto em si:
– o único objetivo da proteção dos desenhos industriais é conceder direitos exclusivos sobre a aparência de um produto, mas não um monopólio relativo ao produto em si:
– a proteção de desenhos industriais em relação aos quais não haja alternativa prática conduz a uma situação de monopólio de fato;
– se se conceder a terceiros autorização para fabricar e distribuir peças de reposição a concorrência será mantida;
– se a proteção de desenhos industriais se estender também às peças de reposição, os produtores independentes violariam estes direitos, o que acarretaria a eliminação da concorrência favorecendo aos titulares dos direitos sobre desenhos industriais um monopólio de fato sobre os produtos.
Justificando a opção pela liberalização imediata e rejeitando assim a possibilidade de estabelecer um prazo durante o qual as peças must-match gozariam de proteção, a Comissão argumentou que um período de proteção reduzido poderia implicar a possibilidade de que, durante esse período, os titulares dos direitos aumentassem os preços.
A opção pela liberalização gratuita encontrou sua justificativa no argumento de que um sistema que consistisse em conceder a terceiros autorização para utilizarem os direitos sobre desenhos detidos por outrem, mediante “remuneração”, levantaria problemas em relação à determinação da titularidade dos direitos, à adequação da compensação e, por último, à disponibilidade de terceiros para pagarem efetivamente essa remuneração.
Com relação aos argumentos de caráter técnico, de que as peças sobressalentes não originais não garantem níveis qualitativos idênticos aos das peças originais, haja vista que não raro os fabricantes independentes não gozam de competências específicas em matéria de processos, de qualidade e de tecnologia, próprias dos fabricantes de veículos, a Comissão argumentou que a proteção de desenhos industriais se destina a recompensar o esforço intelectual dos seus criadores, e não as funções técnicas ou a qualidade da peças. Desenho industrial e parâmetros de segurança são objetos de legislações específicas diferentes. Neste sentido, por exemplo, o pára-choque de um veículo que não apresente os requisitos de registrabilidade necessários não poderá ser protegido como desenho industrial, mas por ter sido produzido de acordo com conhecimentos técnicos de primeira qualidade poderá preencher todas as expectativas de segurança.
No que diz respeito ao aspecto econômico da questão da liberalização da proteção das peças de reposição é interessante citar o resultado da análise promovida pelo governo alemão. A comparação de preços entre 11 diferentes peças de reposição para 20 modelos de automóveis em 9 Estados-Membros e na Noruega levou à conclusão de que estas peças são significativamente mais caras nos países onde é concedida a elas a proteção como desenho industrial. A diferença de preços entre os dois grupos oscila entre 6,4 e 10%, o que provaria, de acordo com as conclusões apresentadas no citado estudo, a tendência dos fabricantes de automóveis a valerem-se de sua posição econômica mais forte em detrimento dos interesses do consumidor. Neste sentido presume-se que o mercado liberalizado provocaria uma queda nos preços praticados no mercado.
Interessante é também o argumento de que as próprias empresas automobilísticas adotam uma política de importação de peças fabricadas no exterior, especificamente em países onde os custos de produção são mais baratos. Esta prática estaria levando empregos para fora do território da União Européia. Neste sentido o estudo toma, entre outros, o exemplo da Audi, que fabrica os faróis de seus veículos no Brasil para, posteriormente, importá-los para o território da União Européia. A liberalização do mercado e a esperada criação de novos empregos na indústria independente de peças de reposição iriam, no fim das contas, trazer de volta a União Européia aqueles empregos.
A controvérsia que a questão gerou e ainda gera na União Européia e o longo caminho percorrido em busca de uma solução para a questão polêmica serve como exemplo das dimensões do problema levado pela ANFAPE à apreciação pelo CADE. O desafio aqui será alcançar uma composição equilibrada entre os interesses e princípios envolvidos na questão.